domingo, 18 de maio de 2008

O sino e o sono

Pareceu-me ouvir um sino bater: consultei o relógio. Uma hora da madrugada! Para quem quer sair do hotel, aí pelas sete horas, é preciso aproveitar o tempo e dormir bem.
(Eu tenho uma amiga que sempre verifica de que são feitos os colchões dos hotéis. Penso nisto porque este não me parece muito cômodo.)
A noite me infunde um sentimento de infinita humildade: entre as outras orações, cada um de nós podia dizer ainda: "Deus, recebe-me em Teus braços, toma conta de mim, sou, na Tua vontade, como um pássaro caído no mar!" Mas é curioso: neste quarto de hotel essas palavras e esses sentimentos não produzem aquele efeito de aconchego e ternura que parecem palpáveis no ambiente da minha casa! Até as paredes são diferentes em sensibilidade - penso. E fecho os olhos pensando.
(É verdade que eu não uso travesseiro. Mas seria difícil usar travesseiros como estes. De que são feitos? Aquela minha amiga examina os travesseiros, também.)
O sino torna a bater. Ah! Estamos perto de um relógio que marca todos os quartos de hora! Meu Deus, como o tempo voa! É preciso dormir antes que seja uma hora e meia...
(Mas esta cama acaba logo ali...Se eu medisse um metro e oitenta, não me seria possível ocupá-la! Que coisa estranha: no infinito da noite e do sono, este limite de madeira, ameaçador! Mais uma noite passa depressa, não tem importância. No entanto, como é difícil descansar assim!)
(Novamente o sino bate: uma hora e meia!)
Recordo vários métodos de conciliar o sono. Deixar o corpo solto como um vestido abandonado. Ir pensando em coisas cada vez mais distantes: a rua, a cidade, a estrada, o país, o mundo, o espaço, a eternidade...
(Mas o sino bate uma hora e quarenta e cinco minutos!)
Continuo a recordar. Como se dorme mais facilmente? Sobre o lado direito ou o esquerdo? Ah, onde foi que eu li que é bom pensar nas pontas dos pés, para desviar a circulação etc. ... etc.? E quem disse que é bom tomar um copo de leite morno com bolachas, ao deitar, para o sono vir mais depressa?
(O sino bate duas horas.)
Duas horas! Agora dormirei com certeza. Já estou cansada de lutar com o comprimeiro da cama, com os pensamentos sobre a arte de dormir...Fechai-vos, olhos meus, e esqueçamos tudo...
(Ah, mas o sino bate duas horas e um quarto!)
Que idéia, contruir-se um hotel em cima de um sino! E este sino onde fica? Abro a janela para ver. O sino está na minha frente. É um gigantesco relógio, que me fita com todos os seus números e ponteiros. Belo de ver. Belo de ouvir, também. Mas...
(E são duas e meia...)
E não há nada a fazer, o sino vai batendo de quarto em quarto, de hora em hora, todas as horas da noite...três, quatro, cinco...
Talvez Olavo Bilac tenha pousado por aqui, algumas vezes, e, desistindo de dormir, tenha tomado de um papel e começado a escrever:
"No ar sossegado um sino canta
Um sino canta no ar sombrio..."
É quase sempre assim: sobre uma adversidade, abre-se a flor da poesia. O som da poesia. Um sino muito alto, no meio da noite, no meio do sono...

MEIRELES, Cecília. Escolha o seu sonho(crônicas). 25 ed. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.109 - 111


Paz.

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